Brasileiros superendividados: ‘Vendi a lavadora para pagar aluguel, agora devo parcelas da máquina’

“Então, gente, estamos precisando de ajuda. O mês passado pagamos alguns exames da Maria, e as coisas saíram do controle… Não podemos pagar parte do aluguel, nem a luz e nem a água. Estamos pedindo ajuda para pagar contas atrasadas.”

Jaqueline Alves, de 31 anos, moradora de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, é uma dos milhões de brasileiros que começaram o ano muito endividados e, por isso, ela fez esse apelo em uma rede social.

“As contas desse mês, provavelmente vamos deixar atrasar, mas o importante é pagar as mais antigas para não ficarmos sem teto, água e luz… O amanhã, Deus proverá!”, disse ela.

Jaqueline é casada e mãe de três — dois meninos de 15 e 7 anos e uma menina de 4 anos, que tem uma doença rara.

A única renda da família, que tem gastos extraordinários frequentes com a saúde da caçula, é uma aposentadoria de um salário mínimo (R$ 1.212 atualmente) que o marido de Jaqueline recebe por também ter uma deficiência.

Parte fica para o banco assim que cai na conta, para pagar parcelas de empréstimos passados, que têm a pensão como garantia. Sobram pouco mais de R$ 700 para sustentar a família no mês.

Jaqueline tem faturas de vários cartões de crédito em atraso, além das contas básicas de casa, somando dívidas que já passam de R$ 20 mil. “Os cartões acabam virando um meio de a gente pagar as contas”, diz.

“A gente precisa às vezes comprar um remédio, compra no cartão, aí chega a fatura, nem sempre a gente consegue pagar o mínimo, e vira uma bola de neve. A gente vai empurrando, pagamos a mais antigas e deixamos as mais novas para depois. Mas nunca conseguimos sanar as dívidas por completo.”

Desde o nascimento da filha, o casal depende da ajuda de conhecidos, amigos e familiares todo mês.

“Mas, agora, com essa crise que está aí, não estamos conseguindo mais arrecadar os valores para manter as nossas contas em dia. Até a solidariedade chega um ponto que não chega a tempo. Porque não é que está difícil só para a gente, está difícil para quem ajuda também”, afirma Jaqueline.

O caso dela é extremo, mas o avanço do endividamento e da inadimplência das famílias brasileiras é uma realidade do país como um todo.

Uma pessoa é considerada apenas endividada quando tem um compromisso financeiro, mas paga em dia. Ela se torna inadimplente quando não paga a dívida no prazo.


‘Os gastos com água e luz viraram uma bola de neve’, diz Jaqueline Alves Foto: Arquivo Pessoal / BBC News Brasil

Tanto o percentual de famílias endividadas quanto o de inadimplentes vêm batendo recordes desde o ano passado e estão em seu maior patamar em 12 anos.

E a tendência é que a inadimplência suba ainda mais em 2022 por causa do aumento dos juros e do fim de medidas emergenciais criadas na pandemia para ajudar os endividados.

A guerra na Ucrânia deve agravar esse cenário, ao provocar aumento de inflação, o que reduz a renda familiar disponível para honrar compromissos financeiros.

Ao fim de fevereiro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, informou que o governo estuda liberar recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para ajudar as famílias endividadas, mas não deu uma data.

Endividamento recorde

O nível de endividamento médio das famílias brasileiras ao longo 2021 chegou a 70,9%, o maior valor até então, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC),

O patamar foi de 76,3% em dezembro, um recorde histórico. Em fevereiro desse ano, o recorde foi novamente quebrado: 76,6%.

“O endividamento foi acelerando ao longo do ano passado”, diz Izis Ferreira, economista da CNC. “Nunca tínhamos tido na série histórica — que começa em 2010 — um ano em que o endividamento cresceu tão rápido.”

Segundo ela, as famílias recorreram ao crédito por motivos diferentes conforme a renda.

“Para as de menor renda, de até dez salários mínimos mensais, o avanço muito rápido da inflação deteriorou o orçamento dessas famílias”, observa Izis.

Ela destaca que, na alta de 10% da inflação em 2021, pesaram muito itens que têm forte impacto na renda das famílias, como gasolina (com alta de preço de 47%), energia elétrica (21%), alimentos (8%) e medicamentos (6%).

Enquanto isso, a renda domiciliar dos brasileiros caiu 10,7% no quarto trimestre de 2021 na comparação anual, o menor patamar da série histórica, iniciada em 2012.

“Isso fez com que essas famílias precisassem usar mais o cartão de crédito, cheque especial e recorrer aos carnês de loja para manterem seu nível de consumo”, explica a especialista.

Já para as famílias mais ricas, com renda mensal acima de dez salários mínimos, o primeiro fator do aumento do endividamento foram os juros muito baixos no início de 2021.

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